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18/09/2014 - A DITADURA NA SAÚDE

 Além dos já conhecidos casos de tortura e impedimento de pesquisas na área, outra característica foi marcante na ditadura: a intensificação da privatização da saúde

Viviane Tavares

 

do Rio de Janeiro (RJ)

A Comissão da Verdade da Reforma Sanitária está recebendo, por meio de seu site, relatos de vítimas da ditadura para o resgate da história e a busca pe­la justiça aos trabalhadores da saúde afe­tados durante o período da ditadura em­presarial-militar. Muitos deles foram presos, outros torturados e outros ain­da tiveram que se afastar de suas pesqui­sas e trabalhos, causando grande prejuí­zo aos estudos e desenvolvimento do se­tor. Mas esse período também é marcado pela descontinuidade de um projeto pa­ra a saúde.

“Quando a gente pensou em organizar a Comissão da Verdade da Reforma Sa­nitária, foi devido à necessidade de re­discutir esse momento, tendo em vis­ta os desdobramentos que vieram com a democracia”, diz Anamaria Tambellini, presidente da Comissão.

Ela explica que o Sistema Único de Saúde (SUS) atual, por exemplo, não é aquele pensado na Reforma Sanitária, portanto chegou o momento de a gente repensar e entender o que aconteceu e quais foram as limitações que aquele pe­ríodo deixou.

Ao analisar os documentos da 3ª Con­ferência Nacional de Saúde, realizada em 1963, um ano antes do golpe – e conside­rada a conferência mais politizada antes da origem da Reforma Sanitária –, iden­tifica-se que o setor apontava para um projeto de país. Nesta conferência, esta­vam pautadas a análise da situação sani­tária nacional e a municipalização, com o objetivo de descentralizar a execução das ações básicas de saúde.

Além disso, a articulação das ativida­des sanitárias nas esferas federal, esta­duais e municipais, dando o primeiro passo para a implantação de um sistema nacional de saúde unificado, também se fez presente. Entre os pontos de desta­que encontravam-se ainda o incentivo à formação dos trabalhadores da saú­de – com ênfase para os de nível técni­co –, a reforma agrária aliada ao comba­te à desnutrição e o incentivo para que as áreas rurais melhorassem suas con­dições de vida.

No entanto, aquele projeto embrioná­rio de proposta para uma saúde mais de­mocrática foi interrompido, assim como o início das reformas de base que marca­ram esse período.

Em 1985, a 8ª Conferência Nacional de Saúde recuperou e avançou nas discus­sões da saúde, mas trouxe consigo os res­quícios dos tempos ditatoriais e até mes­mo de antes dele, que até hoje não foram superados.

A professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Fede­ral do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) Ligia Bahia reconhece que a 3ª Conferência foi um marco, principalmente em relação ao caráter dado ao sistema público de muni­cipalização, mas defende que a 8ª Confe­rência foi mais progressista.

“Elas não são comparáveis por duas ra­zões: a primeira é a participação popular, ausente na Conferência de 1963, e a se­gunda refere-se ao debate a partir dos conceitos ampliado de saúde e de deter­minação social da saúde, que permitiram a formulação das diretrizes da Reforma Sanitária e do SUS. O elo entre a 3ª e a 8ª é a mobilização da capacidade técni­ca de pessoas que trabalhavam em insti­tuições nacionais e internacionais do se­tor saúde”, explica.

Para José Antonio Sestelo, pesquisador do Grupo de Estudos sobre Empresaria­mento da Saúde Henri Jouval Jr. (IESC/UFRJ), o governo militar, assim que as­sumiu o poder, tratou de desarticular e expurgar os movimentos mais progres­sistas, e assim as concepções de reformas de base e outras que começavam a entrar em curso caíram por terra, dando origem a outro projeto de país.

“De certa forma, o trato da questão so­cial nessa época mimetiza os tempos do Partido Republicano Paulista [1873]. A saúde dos trabalhadores e os acidentes de trabalho não voltam a ser tratados como caso de polícia, mas são desloca­dos da esfera pública para a privada sob a égide de que a participação social é si­nônimo de bagunça e subversão, explica.

Segundo ele, nada mais natural, por­tanto, do que a privatização da assistên­cia médica previdenciária em articula­ção com a base de apoio empresarial do regime. “Essa estratégia garantiu, a um só tempo, o apoio político da elite em­presarial tradicional e da nova elite em­presarial gestada à sombra dos milita­res, como também a ampliação da base de apoio popular ao governo por meio da expansão da rede assistencial privatiza­da”, analisa Sestelo.

Diferindo do apontado no texto da 3ª Conferência, em 1963, menos de uma década depois, as iniciativas mudavam o curso das transformações nacionais. Neste contexto, especificamente no caso da saúde, diversas iniciativas simbólicas para caracterizar o que pretendia o regi­me militar foram implantadas nas déca­das de 1970 e 1980. A criação do Insti­tuto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e do Conse­lho Consultivo de Administração da Saú­de Previdenciária (Conasp) é um dos exemplos. Um dos primeiros pontos pos­tos à decadência foi o projeto de univer­salização da saúde.

Vale lembrar que o Inamps só aten­dia quem tinha emprego formal. Quem não se enquadrasse nesta exigência obti­nha atenção à saúde em centros e postos de saúde pública desde que integrasse o perfil dos programas como os de atenção materno-infantil, tuberculose, hansenía­se e outros; ou nos serviços de saúde co­mo as Santas Casas, consultórios e clíni­cas privadas, desde que tivesse condições financeiras para ser atendido.

Privatização da saúde

Para o professor Sestelo, o período mi­litar foi marcado por forte viés privatis­ta, mas, segundo ele, a história do Brasil nos mostra essa tradição. “Observamos na saúde a comprovação da tese do de­nominado desenvolvimento tardio, no que concerne ao processo de reorgani­zação das relações entre capital e traba­lho. Na época colonial, e mesmo depois da criação das primeiras escolas médi­cas na Bahia e no Rio de Janeiro, a as­sistência era obtida mediante pagamen­to direto. Os que não podiam pagar de­pendiam da caridade, que era também um excelente campo de prática para aprendizes e iniciantes na carreira mé­dica”, lembra.

E completa: “Não havia políticas pú­blicas voltadas para a classe trabalhado­ra. O quadro começou a mudar no início do século 20 por influência do movimen­to operário urbano. Surgiram as Caixas de Aposentadorias e Pensões que eram iniciativas mutualistas, depois reguladas pela Lei Eloy Chaves, de 1923. A grande virada veio com a crise de 1929 e as mu­danças conjunturais no bloco de poder. A partir de 1930, a questão social passou a ser tratada menos como ‘caso de polícia’ e mais como uma questão de interesse do Estado. Os Institutos de Aposentadorias e Pensões formaram a espinha dorsal do sistema previdenciário brasileiro para os trabalhadores do polo dinâmico da eco­nomia e, de certa forma, representam um contraponto à prática de assistência médica liberal”.

Fazendo o recorte para o período mi­litar, no livro Na corda bamba de som­brinha: a saúde no fio da história (Es­cola Politécnica de Saúde Joaquim Ve­nâncio e Casa de Oswaldo Cruz, 2010), Carlos Fidelis Ponte, um de seus orga­nizadores, explica que com a criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento So­cial (FAS), em 1974, as empresas de me­dicina passaram a contar com uma nova fonte de financiamento para construção, ampliação e compra de equipamentos.

“Administrado pela Caixa Econômi­ca Federal e constituído principalmen­te com recursos da Loteria Esportiva, o FAS desembolsou até 1979 cerca de 7 bi­lhões de cruzeiros (moeda de então) para a saúde, dos quais 70% (algo em torno de 1 bilhão e meio de reais) foram destina­dos a hospitais particulares situados no eixo Rio-São Paulo”.

Tais empréstimos, relata o autor, fo­ram realizados em condições vantajo­sas para os empresários: “(...) com lon­gos prazos de carência, juros subsidia­dos e correção monetária abaixo da in­flação. Instala-se, assim, um verdadeiro processo de drenagem dos recursos pú­blicos, que passam a capitalizar as em­presas de medicina privada, transfor­mando a saúde em um negócio bastan­te lucrativo”.

Desde sempre, portanto, o cenário da saúde do país é marcado pelo fortaleci­mento do setor privado. O livro Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história mostra ainda que a previdência social, durante o período militar, “patro­cinava o desenvolvimento do setor priva­do mediante a compra de serviços priva­dos de saúde e assim estimulava um pa­drão de organização da prática médica orientada pelo lucro”.

Segundo o texto, a contratação de hospitais e laboratórios privados era remunerada por Unidades de Serviço (US), “modalidade considerada como uma fonte incontrolável de corrupção, já que os serviços de saúde inventavam pacientes e ações que não tinham sido praticadas ou escolhiam fazer apenas as mais lucrativas. A medicina de gru­po, outra modalidade de saúde susten­tada pela previdência, praticava convê­nios com empresas que passavam a fi­car responsáveis pela assistência médi­ca de seus empregados e, dessa forma, deixavam de contribuir com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). O principal interesse desses convênios saúde

era diminuir a quantidade de serviços prestados e baratear os custos desses serviços”.

Ligia Bahia aponta ainda que a rela­ção entre a ditadura e a privatização da saúde é “íntima e apaixonada”. “O regi­me militar poderia ser considerado um precursor da privatização das políti­cas sociais. A fórmula adotada foi a ex­pansão de coberturas e estímulo à cria­ção de empresas na área da saúde. Um processo de privatização sem acompa­nhamento do ideário da focalização dos anos de 1990”, informa.

E completa, explicando de que forma isso se consolidou: “Por meio de duas estratégias: os contratos e convênios da Previdência Social, com médicos, den­tistas, hospitais, clinicas e laboratórios privados e mediante o estímulo e finan­ciamento de empresas de pré-pagamen­to (os planos de saúde) para os trabalha­dores mais especializados. Os rastros dessas estratégias permanecem no sis­tema brasileiro de saúde. É só verificar a terminologia usada pelas empresas e até em teses da área de saúde coletiva. Con­ceitos que faziam sentido naquele mo­mento, como o de beneficiários, perma­necem em uso”.

Plano Nacional de Saúde

Nesse ritmo de privatizações, na 4a Conferência Nacional de Saúde (1967), primeira após a instauração do regime militar, surge a proposta do Plano Na­cional de Saúde (PNS), que pretendia vender todos os hospitais para a inicia­tiva privada.

Como aponta Carlos Fidelis Ponte no livro já citado nesta matéria, o de­créscimo da participação direta do Es­tado no atendimento à população e sua consequente substituição pela rede pri­vada torna-se mais evidente nesse pe­ríodo. Os números expostos no artigo mostram que as internações nos hospi­tais próprios da Previdência Social caí­ram dos reduzidos 4,2% do total de in­ternações em 1970 para 2,6% em 1976, enquanto os hospitais particulares pas­saram a responder por quase 98% des­te serviço.

Além disso, 96% das internações fica­vam sob a responsabilidade de empre­sas de saúde contratadas pelo Ministé­rio da Previdência e Assistência Social. De 1964 até 1974, o número de hospi­tais com caráter lucrativo foi de 944 pa­ra 2.121, aumento que ultrapassou o percentual de 200% em dez anos.

De lá pra cá

Muitos desses atores ainda estão pre­sentes no quadro de gestão do negó­cio de saúde no Brasil, principalmen­te as empresas de plano de saúde. Ligia Bahia indica, por exemplo, as empre­sas Intermédica e Unimed como exem­plos daquelas que ficaram ou se fortale­ceram desde os tempos ditatoriais. En­tre os principais resquícios daquele pe­ríodo no setor, a professora da UFRJ aponta o lobby das empresas com o se­tor público.

“Ficou a herança de uma rede privada pouco eficiente, mas moldada nas lides da negociação política e, portanto, nos lobbies das empresas, e em um padrão de remuneração que estimula a realiza­ção de procedimentos que pagam mais, e não aqueles necessários para a melho­ria de saúde da população”, explica.

Para Sestelo, o fim do regime militar tampouco representou plenamente a res­tauração de um modelo não privatista.

“A influência de fatores conjuntu­rais de âmbito nacional e internacional se fez sentir com a crise fiscal dos anos de 1970, seu impacto regressivo sobre os países periféricos nos anos de 1980 e com a eleição de Collor de Mello nos anos de 1990. O Banco Mundial identi­ficou claramente, a partir de 1987, que as atividades de assistência à saúde po­deriam ampliar seu potencial como campo de acumulação de capital, agora pautado, cada vez mais, em uma lógica financeira de curto prazo e escasso las­tro material”, informa.

Cenário hoje

Para ele, o cenário político hoje se ex­plica por uma nova geração de repre­sentantes da elite colonizada latino-a­mericana que assumiu a prescrição do Consenso de Washington. Além disso, a década de 1990 difundiu internamente a ideia de privatização de ativos públi­cos como solução para a crise.

“A vitória eleitoral de uma coalisão de centro-esquerda em 2003 estabeleceu um limite à expansão de políticas priva­tistas mais agressivas, mas não reverteu o que havia de fundamental na herança neoliberal”, avalia.

Além disso, o professor lembra que as empresas de planos e seguros de saúde abriram capital nas bolsas de valores e, assim, sistemas de assistência à saúde passaram a ser objeto para auferir lucro em um mercado instável.

Ele destaca também a associação dessas empresas ao poder político e às instituições: “Ganharam musculatura e poder de influência política por meio de uma estratégia inteligente de financia­mento de campanhas a cargos eletivos. A Agência Nacional de Saúde Suple­mentar (ANS) foi capturada por repre­sentantes do setor regulado”, afirma.

Para ele, grupos econômicos que têm suas estratégias empresariais pautadas no agenciamento e intermediação de transações de compra e venda de servi­ços de saúde jamais poderiam ser con­siderados como polo de inovação e pro­moção de desenvolvimento econômico e social em um país tão desigual como o nosso.

“Não inovam, não contribuem para reduzir desigualdades, não há sustenta­bilidade possível em seus modelos que não seja ancorada em subsídios públi­cos. Por que haveria o conjunto da po­pulação subsidiar a acumulação de uma pequena comunidade de negócios in­sustentáveis?”, pontua.

E completa, pensando nas perspecti­vas: “Entretanto, não se cogita impor li­mites a esse tipo de prática que subverte a lógica e os princípios do Sistema Úni­co de Saúde. Em uma visão de perspec­tiva futura de médio prazo, o verdadeiro horizonte de disputa que se anuncia está na definição política sobre o destino do excedente produzido pelo trabalho e se a parcela dos recursos para investimen­tos em saúde e educação será aplicada na compra de serviços ou na constru­ção de valores solidários e instituições e ações pautadas pelo direito de cidada­nia”. (Escola Politécnica de Saúde Joa­quim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/29854


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