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Um inadiável acerto de contas com a Mãe Terra


Publicado: 04/09/2015

Por Leonardo Boff

A encíclica do Papa Francisco sobre “O cuidado da Casa Comum” (Laudato Si) está sendo vista como a encíclica “verde” semelhantemente como quando dizemos economia “verde”. Eis aqui um grande equívoco. Ela não quer ser apenas “verde” mas  propõe a ecologia “integral”.

Na verdade, o Papa deu um salto teórico da maior relevância ao ir além do ambientalismo verde e pensar a ecologia numa perspectiva holística que inclui o ambiental, o social, o político, o educacional, o cotidiano e o espiritual. Ele se coloca no coração do novo paradigma segundo o qual cada ser possui valor intrínseco mas está sempre em relação com tudo, formando uma imensa rede, como aliás o diz exemplarmente a Carta da Terra.

Em outras palavras, trata-se de superar o paradigma da modernidade. Este coloca o ser humano fora da natureza e acima dela como “seu mestre e dono" (Descartes), imaginando que ela não possui nenhum outro sentido senão quando posta a serviço do ser humano que pode explorá-la a seu bel-prazer. Esse paradigma subjaz à tecnociência que tantos benefícios nos trouxe mas que simultaneamente gestou a atual crise ecológica pela sistemática pilhagem de seus bens naturais.

E o fez com qual voracidade que ultrapassou os principais limites intransponíveis (a Sobrecarga da Terra). Uma vez transpostos, colocam em risco as bases físico-química-energéticas que sutentam a vida (os climas, a escassez de água, os solos, a erosão da biodiversidade, entre outros). É hora de se fazer um ajuste de contas com a Mãe Terra: ou redifinimos uma nova relação mais cooperativa para com ela e assim garantimos a nossa sobrevivência ou podemos conhecer um colapso planetário.

O Papa inteligentemente se deu conta desta possibilidade. Daí que sua encíclica se dirige a toda a humanidade e não apenas aos cristãos. Tem como propósito fundamental cobrar um novo estilo de vida e uma verdadeira “conversão ecológica”. Esta implica um novo modo de produção e de consumo, respeitando os ritmos e os limites da natureza também em consideração as futuras gerações às quais igualmente pertencem a Terra. Isso está implícito no novo paradigma ecológico.

Como temos a ver com um problema global que afeta indistintamente a todos, todos são convocados a dar a sua contribuição: cada país, cada instituição, cada saber, cada pessoa e, no caso, cada religião como o cristianismo.

Em razão desta urgência, o Papa, juntamente com a Igreja Ortodoxa, instituíu todo o dia 1º de setembro de cada ano como o “Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação”. Assevera claramente que “devemos buscar no nosso rico patrimônio espiritual as motivações que alimentam a paixão pelo cuidado da criação” (Carta do Papa Francisco de 6/08/2015). Observe-se a expressâo “paixão pelo cuidado da criação”. Não se trata de uma reflexão ou algum empenho meramente racional mas de algo mais radical, “uma paixão”. Invoca-se aqui a razão sensível e emocional. É ela e não simplesmente a razão que nos fará tomar decisões, nos impulsionará a agir com paixão e de modo inovador consoante a urgência da atual crise ecológica mundial.

O Papa tem consciência de que o cristianismo (e a Igreja) não está isento de culpa por termos chegado a esta situação dramática. Durante séculos pregou-se um Deus sem o mundo, o que propiciou o surgimento de um mundo sem Deus. Não entrava em nenhuma catequese o mandato divino, claramente assinalado no segundo capítulo do Genesis, de “cultivar e cuidar o jardim do Éden” (2,15). Pelo contrário, o conhecido historiador norte-americano Lynn White Jr ainda em 1967 (The historical Roots of our Ecologic Crisis, em Science 155) acusou o judeo-cristianismo com sua doutrina do domínio do ser humano sobre a criação como o fator principal da crise ecológica. Exagerou como a crítica o tem mostrado. Mas de todos os modos, suscitou a questão do estreito vínculo entre a interpretação comum sobre o senhorio do ser humano sobre todas as coisas e a devastação da Terra, o que reforçou o projeto de dominação dos modernos sobre a natureza.   

O Papa opera em sua encíclica (nn. 115-121) uma vigorosa crítica ao antropocentrismo dessa interpretação. Entretanto, na carta de instauração do dia de oração com humildade suplica a Deus “misericórdia pelos pecados cometidos contra o mundo em que vivemos”. Volta a referir-se a São Francisco com seu amor cósmico e respeito pela criação, o verdadeiro antecipador daquilo que devemos viver nos dias atuais.

Cabe concluir com as palavras do grande historiador Arnold Toynbee: ”Para manter a biosfera habitável por mais dois mil anos, nós e nossos descendentes temos que esquecer o exemplo de Pedro Bernardone (pai de São Francisco), grande empresário de tecidos no século XIII, e seu bem-estar material e começar a seguir o modelo de Francisco, seu filho, o maior entre todos os homens que viveram no Ocidente… Ele é o único ocidental que pode salvar a Terra” (em ABC, Madrid 19/12/1972, p. 10).

Leonardo Boff é teólogo, escritor e professor universitário



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