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A criminalização que cortou nossas raízes


Este artigo integra a edição especial da Revista Platô: Drogas e Políticas, a primeira publicação brasileira dedicada ao tema, com análises e reflexões científicas em linguagem acessível

Publicado: 24/04/2025
Escrito por: Le Monde Diplomatique

LE MONDE DIOLOMATIQUE

A relação histórica entre as populações negras e periféricas no Brasil e seus saberes medicinais é marcada por processos de exclusão, criminalização e violência, muitas vezes impulsionados por políticas que visavam apagar e suprimir as culturas e práticas dessas populações, impondo a cultura cristã-europeia com o objetivo de garantir a estrutura colonial. Esse processo teve continuidade durante os diferentes períodos republicanos, mas não impediu a forte contribuição da população afro-brasileira para a cultura do país. 

No caso específico dos saberes medicinais, a história é repleta de práticas que, por séculos, foram não apenas ‘deslegitimadas’, mas também proibidas por uma série de medidas que afugentaram a população negra e periférica de sua conexão com a natureza, seus conhecimentos e os próprios sistemas de saúde. 

Os invasores portugueses do território, chamado Pindorama, trataram de silenciar e exterminar as culturas africanas e as práticas de cura tradicionais trazidas pelos negros, assim como as práticas dos povos indígenas, desde os primórdios da colonização. A proibição do pito do pango, em 1830 na cidade do Rio de Janeiro, é um exemplo dessa repressão. O pito do pango era uma prática cultural da população africana, que consistia em fumar maconha em um cachimbo, muitas vezes como parte de rituais de cura e proteção espiritual. A proibição de fumar a erva não se deu pela crença de que ela possuía poderes místicos e causava um mal social, mas pelo fato de ser associada à cultura e resistência das populações negras. As autoridades coloniais, preocupadas com qualquer tipo de autonomia ou organização da população escravizada e das comunidades negras, agiram pela proibição da maconha, assim como pela proibição de todo tipo de expressão cultural que não estivesse alinhada aos preceitos da branquitude masculina europeia. 

Além disso, a maconha e outras ervas utilizadas por curandeiros e rezadeiras eram parte de uma medicina popular que se baseava no conhecimento ancestral transmitido de geração em geração. Essa medicina, transmitida por pessoas como as rezadeiras, curandeiras etc., tinha um profundo vínculo com a natureza e com o entendimento das propriedades das plantas e ervas. As mulheres negras, em particular, desempenhavam um papel central nesse processo, não apenas como curandeiras, mas como detentoras do saber popular sobre o uso das plantas. Ao criminalizar a utilização dessas ervas, o Estado não só cerceava o direito de cura dessas populações, mas também intencionalmente atentava contra suas tradições e sua própria identidade cultural. 

Crédito: rawpixel.com

Esse processo de criminalização do curandeirismo não pode ser dissociado das dinâmicas de poder que permeavam a formação do Estado republicano no Brasil. A busca por centralizar o conhecimento em saúde dentro das instituições oficiais e a necessidade da Igreja Católica de reafirmar sua influência contribuíram para a construção de um discurso que associava práticas populares de cura à ignorância e ao atraso, e as demonizava. Assim, a legislação penal de 1890 não apenas criminalizou o curandeirismo, mas serviu como instrumento de exclusão e repressão às práticas tradicionais de saúde, muitas delas enraizadas em saberes afro-indígenas. Dessa forma, a interdição legal dessas práticas não foi apenas uma questão de regulação sanitária, mas um reflexo da disputa por poder e legitimidade no campo da medicina e da religião na virada do século XIX para o XX. 

As curandeiras, que muitas vezes estavam mais próximas das populações de baixa renda, especialmente negras e periféricas, enfrentaram não apenas um combate à sua prática, mas também um ataque sistemático à sua existência. Elas foram vistas como uma ameaça às instituições médicas da época, que eram dominadas por um grupo de médicos com formação acadêmica europeia e viam a saúde como mercado. Naquele momento, médicos da “elite”, com suas práticas científicas e estigmatizantes, viam as curandeiras como concorrentes que “roubavam” clientes, sem ter a mesma formação acadêmica ou o reconhecimento das instituições “oficiais”. 

Esse processo de marginalização e criminalização das curandeiras e do uso de ervas foi tanto uma questão cultural quanto econômica, pois as práticas de cura baseadas nas ervas representavam uma forma de resistência não só à opressão social e racial, mas também ao monopólio do mercado farmacêutico e médico. As curandeiras, especialmente aquelas que trabalhavam em comunidades negras e periféricas, eram frequentemente mais prestigiadas do que os próprios médicos, até mesmo pelas classes mais abastadas. Elas estavam mais próximas das necessidades da população e ofereciam alternativas acessíveis, baseadas em conhecimentos ancestrais e das plantas, que não dependiam de grandes investimentos ou da indústria farmacêutica dos comprimidos. 

A Lei de Terras de 1850, sancionada por Dom Pedro II, representou um marco na regulamentação fundiária no Brasil ao estabelecer a compra como única forma de acesso às terras públicas. Essa medida inviabilizou práticas anteriores de posse e doação, consolidando a propriedade privada como base da estrutura agrária nacional. Promulgada em um contexto de transição, logo após a proibição do tráfico negreiro, a legislação tinha, oficialmente, o falso objetivo de dinamizar a economia agrícola e incentivar a imigração europeia. No entanto, ao restringir o acesso à terra apenas àqueles que possuíam recursos financeiros, a lei excluiu ex-escravos, escravizados e camponeses pobres, que, sem condições de aquisição, foram forçados a se submeter ao trabalho assalariado insuficiente e a formas precárias de ocupação, como os cortiços e favelas, no caso do Rio de Janeiro. No sentido mais cru da coisa, o povo que mais trabalhou e ainda trabalha nesta terra, sendo a espinha dorsal desta nação, como dizia Abdias Nascimento, é o que menos tem acesso à terra, à propriedade, a qualquer coisa. 

Com a Lei de Terras, muitas dessas populações foram forçadas a viver em áreas sem condições mínimas de cultivo ou de acesso à natureza, dificultando ainda mais o acesso às plantas medicinais que fizeram parte do seu cotidiano. As terras eram tomadas por grandes latifundiários ou pela especulação imobiliária nos centros urbanos, que privaram as populações negras e periféricas do direito de cultivar suas próprias ervas e plantas, de ter acesso não só a moradia, mas também a uma habitação digna, com direito a tudo que era destinado ao bem-estar do restante da população. 

Ao longo dos séculos XIX e XX, com o aumento da industrialização e o fortalecimento do mercado farmacêutico, a prática de curandeirismo e o uso de ervas foram cada vez mais criminalizados. A medicina que se apresentava como oficial, com seu enfoque ocidental e científico, se distanciava dos saberes populares, em um movimento de desvalorização e estigmatização das práticas de cura tradicionais. Além disso, a indústria farmacêutica, à medida que avançava, se apropriou desses conhecimentos e os confinou nos laboratórios, comprimindo-os em produtos patenteados e controlados, de modo que os saberes tradicionais, que antes eram de uso comum e livre, passaram a ser controlados por grandes empresas. Esse tipo de saque segue acontecendo ainda hoje em diversos cantos do Brasil, como com as populações ribeirinhas da Amazônia. Todo conhecimento é roubado, transformado em remédio ou cosméticos e vendido ao grande público. Sem pagar patente, sem licença. Nada. 

A relação entre a indústria farmacêutica e o Estado, ao longo da história, foi marcada por um processo de exclusão das práticas de cura populares. Esse sistema não apenas monopolizou o mercado da saúde, mas também alimentou um ciclo de desinformação, impedindo as novas gerações de conhecerem as propriedades das plantas e das ervas, conhecendo apenas a medicina farmacêutica. Os processos populares para lidar com a saúde e as doenças, que antes eram uma fonte de cura e resistência, foram sendo apagados, enquanto a indústria farmacêutica ganhou prestígio e poder, consolidando-se como a principal forma de tratamento da população. Em geral, se um jovem sente dor de cabeça nos dias de hoje, é mais fácil tomar algum comprimido analgésico do que um chá de camomila, por exemplo. 

Durante e a partir da Primeira República (1889- 1930), com o gradativo crescimento urbano e surgimento das favelas, mocambos, cidades satélites etc., a população negra e a periférica foram ainda mais marginalizadas. Desde a Lei de Terras, e através dos diferentes códigos de obras e planos urbanos, o direito à moradia foi constantemente negado a essas populações, que se viram forçadas a viver em condições precárias, nas encostas e morros ou em áreas afastadas do centro das cidades. As políticas urbanas de caráter higienista, que visavam “limpar” a cidade das classes populares, levaram a população a viver em locais sem infraestrutura, sem acesso a serviços básicos e, muitas vezes, sem contato com áreas verdes ou com a natureza. 

As favelas, ao longo do tempo, se transformaram em verdadeiros “desertos de concreto”, onde o acesso à terra e às plantas é praticamente inexistente. Essa exclusão das áreas urbanas e a falta de infraestrutura contribuíram para o afastamento das populações de suas práticas de cura tradicionais, tornando-se cada vez mais difícil a utilização de ervas e plantas medicinais, que eram essenciais para a manutenção da saúde dentro dessas comunidades. O próprio espaço urbano, sem árvores e com escassez de verde, tornou-se um reflexo da exclusão social e cultural vivida por milhares de pessoas. 

A indústria cultural e a farmacêutica têm um papel fundamental nesse processo de apagamento e substituição dos saberes tradicionais. Acredita-se, por influência da mídia e da propaganda, que a cura está nos comprimidos e na medicina de consultório e jaleco, associando as práticas tradicionais a algo obsoleto e ineficaz. Ao mesmo tempo, a indústria farmacêutica lucra com a desinformação e a exclusão dos saberes populares, ao sequestrar esses conhecimentos e confiná-los nos laboratórios, onde são patenteados e transformados em produtos caros e inacessíveis à maioria da população — sem querer aqui mencionar que essa indústria da cura é a mesma que produz veneno e câncer no mundo. É um contrassenso ou apenas capitalismo que uma empresa como a Bayer atue no mercado da cura medicamentosa e do venenoso agronegócio? 

Podemos analisar a desigualdade no acesso ao uso terapêutico da maconha no Brasil, por exemplo, como um reflexo direto de décadas de políticas proibicionistas que historicamente criminalizam e marginalizam a população negra e pobre. Enquanto famílias de classe média —- não antes de muita luta para descriminalizar por parte das mães — têm acesso a derivados da cannabis por meio de prescrições médicas e autorizações judiciais, moradores de favelas enfrentam barreiras que vão desde a falta de assistência médica até o risco de criminalização e repressão durante operações policiais. Mesmo que legal, as famílias possuem profundo medo de serem pegas com o medicamento. Muda-se a lei, permanece a cultura. 

Como destaca relatório Plantando Saúde e Reparação, “as favelas ficam com a repressão e a violência gerada pela guerra às drogas, enquanto o ‘asfalto’ tem acesso a tratamentos e substâncias com controle de qualidade” (MOVIMENTOS, 2023). Esse contraste é de dominação, mas também econômico e de mercado. Eles não conseguiram, mas causaram estragos. 

A falta de acesso à terra, o crescimento das favelas e a negação de direitos básicos, como moradia, educação e saúde, também contribuíram para esse afastamento, criando um cenário em que as ervas e as plantas, que um dia foram fontes de cura, hoje estejam desaparecendo dessas localidades, enquanto a indústria farmacêutica lucra com a doença e a miséria. Atualmente há mais farmácias e igrejas nas favelas do que plantas e expressões de outras matrizes religiosas. Plante! 

 

Aristênio Gomes dos Santos é mestrando em História/UERJ, cofundador e coordenador da org. Movimentos e pesquisador em Segurança Pública da Redes da Maré. 



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