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A nossa democracia está sob ataque


Em entrevista, o jurista Marcio Sotelo afirma que a nossa democracia está sob ataque e que é preciso construir já uma força política capaz de reagir à escalada fascista

Publicado: 06/07/2015

Publicado no Viomundo 

Por Conceição Lemes e Patrick Mariano

Os seis primeiros meses de 2015 foram marcados pelo rebaixamento de direitos conquistados duramente durante décadas.

Por exemplo, os projetos da terceirização da atividade-fim e de redução da maioridade penal aprovados na Câmara, por enquanto. O ajuste fiscal que diminuiu direitos trabalhistas. Isso sem falar no projeto do senador José Serra (PSDB-SP), que implica abrir a operação do pré-sal, hoje exclusiva da Petrobras, às petroleiras estrangeiras.

Somado a isso, há uma escalada autoritária em matéria penal.

A Constituição da República está sendo desrespeitada na caradura por quem deveria zelar pela sua aplicação responsável.

Vemos isso nas ações do juiz Sérgio Moro e dos procuradores atuando na Operação Lava Jato. Também na Câmara dos Deputados, onde o seu presidente, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), está passando por cima de cláusulas pétreas da Carta Magna brasileira.

Ao mesmo tempo, testemunhamos o acovardamento do PT, que por vezes adota posturas dúbias, quando não em franca oposição às suas bandeiras históricas, completamente divergentes das ações do governo.

Conversamos sobre essas constatações com o jurista Marcio Sotelo Felippe, ex-procurador geral do Estado de São Paulo e membro da Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil Federal (OAB-Nacional).

Viomundo — Conquistas históricas e o Estado Democrático de Direito estão sendo mesmo desmantelados?

Marcio Sotelo – O Estado Democrático de Direito é uma construção em curso.

Temos uma Constituição que diz que a dignidade humana é fundamento da República. Porém, um olhar para o sistema prisional, que amontoa seres humanos em condições abjetas, por exemplo, nos leva a concluir que a eficácia desse princípio muitas vezes se reduz a tinta no papel.

As consequências são tremendas. A violência do Estado gera mais violência, que gera mais repressão e mais violência do Estado. E, assim, caímos num círculo vicioso cujo resultado será a barbárie, encoberta por um manto de normas ineficazes, formais e uma aparência enganosa de Estado de Direito.

O que estamos assistindo é uma ofensiva de direita para revogar as poucas garantias fundamentais que temos e o patrimônio público, como na questão do pré-sal.  Direitos trabalhistas estão sob ameaça.  O ajuste fiscal rebaixa as condições de vida dos excluídos.

De fato, a democracia — em seu conceito real, que implica valores, direitos e princípios — está sob ataque.

Figuras vulgares e oportunistas, como Cunha [Eduardo Cunha] e Renan [Renan Calheiros], são  armas desse ataque.  Eles têm poder porque forças sociais lhes dão suporte. Ninguém consegue mais de 300 votos no Parlamento para emendar a Constituição porque é “esperto”. É a luta social que explica esse cenário. É preciso colocar as coisas na perspectiva correta. O que estamos vendo é a velha luta de classes.

Viomundo – Existe algum paralelo ao que estamos assistindo?

Marcio Sotelo – Existe, sim. É a velha luta de classes, como já dissemos. A ofensiva do grande capital, a escalada da burguesia predatória, ganhou nova forma com o neoliberalismo. Ela necessita rebaixar a democracia, cercear liberdades democráticas, que são fundamentais para a resistência dos debaixo, para acelerar o processo de acumulação.

O neoliberalismo tem uma tática. Antes de mais nada, precisa destruir a democracia. Pinochet e Tatcher, cada um a seu modo, mostraram isso. Tatcher atacou selvagemente o sindicalismo inglês e o imobilizou. As privatizações na Rússia sob Ieltsin, que entregaram por alguns mil dólares imenso patrimônio público que valia centenas de milhões de dólares, somente foram possíveis com um golpe e repressão.

O passado ilumina o futuro. Aqui, certas conquistas sociais e garantias democráticas são obstáculos à sanha de acumulação. Por isso, estão sob ataque.

Viomundo – E na história do Brasil? 

Marcio Sotelo —  Políticas sociais regressivas sempre existiram. O século XX viu o fascismo. Aqui a ditadura militar aniquilou direitos fundamentais e garantias trabalhistas O que vemos agora é uma dominação de tipo novo, preservando aparência democrática, mas ganhando consciências por meio de conceitos como a superioridade do mercado, a meritocracia, a ideia de que direitos sociais são um entrave à circulação de riquezas.

O Chile de Pinochet [Agusto Pinochet] foi o laboratório econômico, implementando essas medidas sob uma ditadura. A Inglaterra de Tatcher [Margareth Tatcher], o segundo laboratório, aplicando essa política não sob uma ditadura, mas  sob as velhas formas parlamentares representativas. Esse é o modelo  aplicado aqui,  sem  ditadura.  E quando golpes são dados, o modelo é o paraguaio: suaves golpes jurídicos.  Nada de novo no front, a não ser a forma de dominação.

Viomundo — Nós estamos assistindo a Constituição da República ser desrespeitada a todo e a direito. Ao mesmo tempo, vemos a política dúbia do PT. Suas bandeiras históricas são divergentes das ações do governo. Qual o efeito simbólico dessa postura?

 Marcio Sotelo — A opção, certamente mais cômoda, para os governos de centro-esquerda que tivemos, foi estabelecer algumas políticas públicas que deram algum poder de consumo a parcelas da população que praticamente não o tinham. Só. Deu-se por feliz com isso. Não mobilizou, não organizou, não conscientizou. Não construiu uma base social de apoio. Ou seja, ganhar votos, ganhar eleições, ser governo, mas renunciar a ser poder real. Isso não seria pedir o impossível.

Um simples exemplo: Cristina Kirchner teve a coragem política de enfrentar a mídia conservadora com a ley de medios. Há um mínimo que se espera de um governo de esquerda. Algumas pautas progressistas para pelo menos honrar o nome da rosa: ser esquerda.

No campo dos direitos humanos, o que tivemos? Nenhuma política pública para enfrentar a chaga das torturas, da violência policial, para mudar essa realidade brutal da repressão a negros e pobres, para minimamente humanizar o sistema prisional. Omissão, completa e absoluta.

A triste conclusão é que querem ser governo, mas não poder. As velhas estruturas de poder ficaram intactas, mas “sob nova gerência”. Mas os donos do poder preferem ter a própria gerência, o que explica o processo em curso de derrubada da presidenta, que poderá, sim, ocorrer. O efeito simbólico disso será que nada pode mudar. Uma derrota estratégica tremenda para a esquerda.

Viomundo  — Na questão da maioridade penal, o governo Dilma tentou uma aliança com o PSDB do senador José Serra e do governador de São Paulo, GeraldoAlckmin, em troca do aumento do prazo de internação. Na sexta-feira,  Alckmin deu uma entrevista salientando a constitucionalidade da proposta de Eduardo Cunha e que ela complementa a que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Negociar direitos fundamentais não contribui para confundir o papel histórico da esquerda que sempre se pauta pela ampliação deles?

Marcio Sotelo — Antes de mais nada, uma palavra sobre a questão da maioridade penal. Até as paredes das faculdades de Direito sabem que a imputabilidade diz respeito ao sujeito da conduta, não ao crime. Não importa que crime foi praticado. Se o sujeito é inimputável, é inimputável pela ausência de racionalidade ou por imaturidade da razão.

Se assim é para um crime, assim é para todos. Espanta a indigência  que leva mais de 300 congressistas a votar uma coisa dessas. Nem se deve dizer que é inconstitucional. Há uma questão prejudicial para podermos entrar no campo da constitucionalidade: o nonsense.

Se é nonsense, nem ingressa na esfera lógica da discussão jurídica. Não podemos permitir que a direita transforme nossa existência naquela frase do Macbeth: uma história tonta contada por um idiota.

Viomundo – O que achou dessa negociação do governo Dilma com o PSDB na questão dos menores?

Marcio Sotelo — Se Dilma renunciou a ser poder para ser apenas governo, vale o que vier. Vale tudo. Nessa altura, intimidada pela reação e querendo salvar seu mandato, nada deve nos surpreender. Mas poderia ela refletir sobre esta questão: “de que adianta ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”

Viomundo — Na ausência de uma força política de esquerda capaz de hegemonizar a reação, como o senhor avalia o papel do PT diante desse quadro histórico. Como reagir ao avanço da escalada autoritária? Como despertar o governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores dessa letargia e conservadorismo preocupantes?

Marcio Sotelo — O PT não é só Dilma e não é só o ambíguo Lula. Há admiráveis combatentes do povo em suas fileiras ou entre seus apoiadores. Há gente com passado respeitável de lutas populares que precisa reagir. Mas essa reação não pode se limitar à luta para salvar o mandato de Dilma, sem ir a fundo na crítica às escolhas, ações e omissões do PT em seus sucessivos mandatos. Não pode se limitar à estreiteza partidária.

É preciso construir já uma força política capaz de hegemonizar a reação contra a escalada fascista ou direitista. Com outros partidos de esquerda, com segmentos democráticos, extraparlamentares, com o povo (não a classe média filofascista) nas ruas. Pode-se agora salvar a luta democrática nesta geração ou deixar uma herança maldita para a geração seguinte e um atraso de décadas, que provocará mais sofrimento social, mais miséria, mais violência.

Espera-se coragem, responsabilidade política e grandeza moral de toda a esquerda, espera-se que todos digam já, agora,  “não passarão”. Eles podem bater a nossa carteira que está no bolso. Mas não permitamos que batam a nossa carteira espiritual: a única luta que se perde é a luta que se abandona.

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