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CALAMIDADE PÚBLICA: A geopolítica do caos


A maioria dos casos de desnutrição envolve crianças menores de cinco anos, com bebês de até seis meses sendo especialmente vulneráveis. Mulheres grávidas e lactantes também representam uma parcela significativa dos casos

Publicado: 31/03/2025
Escrito por: Le Monde Diplomatique Brasil

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL

O Iêmen, localizado no extremo sul da Península Arábica, é um país de rica herança histórica e cultural, mas que há anos enfrenta uma das piores crises humanitárias do mundo. Com uma população de aproximadamente 30 milhões de pessoas, o país é marcado por conflitos internos, instabilidade política e desafios econômicos. Desde 2015, o local vivencia uma guerra devastadora entre o governo reconhecido internacionalmente e o grupo rebelde Houthi, que controla a capital, Sanaa, e grande parte do norte do país. O conflito também envolve potências regionais como a Arábia Saudita e o Irã, tornando-se um campo de batalha para disputas geopolíticas. Os bombardeios, bloqueios e confrontos armados resultaram em milhares de mortes e no deslocamento de milhões de pessoas.

A guerra desencadeou uma crise humanitária sem precedentes. Segundo a ONU, 80% da população precisa de ajuda humanitária, e milhões enfrentam a fome e a desnutrição severa. A escassez de alimentos, a destruição de hospitais e a falta de acesso a serviços básicos agravaram ainda mais a situação. Doenças como a cólera e a desnutrição infantil atingem níveis alarmantes, e o sistema de saúde está à beira do colapso.

As histórias de dor e sofrimento são inúmeras. Aisha, por exemplo, buscou tratamento para a sua filha de cinco meses no hospital Al Salam, no distrito de Khamir. Na unidade apoiada por Médicos Sem Fronteiras (MSF), a equipe monitora a temperatura da criança, realiza exames, fornece oxigênio e leite. “Viajei mais de duas horas e gastei 15.000 riais iemenitas (aproximadamente 61 dólares) para chegar até aqui. Estamos vivendo em condições difíceis, com pouco dinheiro para as necessidades diárias, e os centros de saúde mais próximos não têm departamentos especializados para tratar desnutrição. Um médico perto de onde moro finalmente nos encaminhou para cá”, conta Aisha.

MSF-supported ITFC in Al Salam Hospital in Amran, Yemen. March 2025.
Crédito: Médicos Sem Fronteiras

Antes de chegar ao hospital, sua filha teve febre e chorava frequentemente devido à dor nos ouvidos. “Tentei amamentá-la e dar leite em pó, mas nada ajudou. Temos apenas um provedor para nossa família de 12 pessoas, e ele não consegue cobrir todas as despesas. Minha filha está fraca e seu peso não mudou até agora. Tenho medo de perdê-la, ela é a única menina da família. Espero que se recupere logo e que mais organizações venham para ajudar as pessoas, especialmente aquelas que não têm comida ou renda suficiente”, relata Aisha.

Infelizmente, a história de Aisha está longe de ser única no Iêmen. A crise cresce rapidamente, e as necessidades superam a capacidade de tratamento disponível. Em setembro de 2024, durante o pico sazonal de desnutrição, as taxas de ocupação de leitos nas unidades apoiadas pelo MSF atingiram níveis extremamente altos. No hospital Al Salam — projetado para abrigar entre 23 e 51 leitos — a taxa de ocupação chegou a 254%, demonstrando uma situação de superlotação extrema. Muitas vezes, a equipe médica precisa atender pacientes em corredores apertados e espaços improvisados.

Esse aumento drástico na desnutrição reflete o que as equipes do MSF observaram nos últimos três anos. Entre 2022 e 2024, instalações apoiadas pelo MSF em cinco províncias — Amran, Saada, Hajjah, Taiz e Al Hudaydah — trataram 35.442 crianças desnutridas com menos de cinco anos. Embora esses números não representem todo o Iêmen, eles revelam as dificuldades diárias que as famílias enfrentam devido ao acesso limitado à saúde e à alimentação adequada.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, em abril de 2024, 46% das unidades de saúde do Iêmen estavam parcialmente funcionais ou completamente fora de serviço. Atrasos nos encaminhamentos médicos e falta de acesso a cuidados básicos fazem com que muitas famílias só consigam ajuda quando é tarde demais. Muitas famílias têm dificuldades para manter o acompanhamento médico após a alta, pois não recebem assistência alimentar ou enfrentam barreiras para acessar vacinas e atendimento de rotina. Como resultado, muitos pacientes voltam a adoecer, tornando-os ainda mais vulneráveis. Baixas taxas de vacinação também aumentam a suscetibilidade a doenças evitáveis, como sarampo, cólera e diarreia aguda, agravando a desnutrição infantil.

Muitas famílias não só enfrentam despesas médicas exorbitantes, como também lutam para garantir refeições adequadas. Uma mulher cujo filho de um ano foi internado no hospital Ad-Dahi, apoiado pelo MSF na província de Al Hudaydah, relata: “Meu marido não pode trabalhar por causa de uma deficiência física. Eu tento ganhar dinheiro, mas nunca é suficiente. Conseguir uma refeição decente é um desafio, e só comemos carne duas vezes por ano — durante o Eid, quando outras pessoas a compartilham conosco. Esse é o único momento em que temos carne no ano todo.” Em 2023 e 2024, mais de 10.000 crianças receberam tratamento nesse hospital.

Em 2024, o hospital Abs, na província de Hajjah, que pode expandir sua capacidade para até 120 leitos durante o pico da desnutrição, registrou taxas de ocupação de 200% em setembro e 176% em outubro — os níveis mais altos em seis anos.

No centro de alimentação terapêutica interna do hospital, Asia busca tratamento para sua filha de um ano e três meses. Ayana foi internada com desnutrição moderada e complicações que agravaram sua condição. “Ela chegou há alguns dias com diarreia aguda e febre alta”, diz uma enfermeira do MSF no hospital Abs. “Ela foi internada e está sob tratamento. Ayana está se recuperando e melhorando a cada dia.” Ayana é a única filha de Asia, e ela teme perdê-la. Para pagar a viagem até o hospital, Asia vendeu alguns de seus pertences domésticos. O tratamento foi recomendado por vizinhos cujos filhos haviam sido tratados com sucesso na unidade.

O MSF tem respondido ativamente à crise de desnutrição no Iêmen desde 2010 em parceria com as autoridades de saúde em cinco províncias: Amran, Saada, Hajjah, Taiz e Al Hudaydah. Esses centros oferecem tratamento especializado para crianças menores de cinco anos que sofrem de desnutrição severa e moderada com complicações. As equipes do MSF também treinam profissionais de saúde locais, fortalecem os sistemas de encaminhamento e apoiam a detecção precoce da desnutrição nas comunidades.

Os registros do MSF mostram que a maioria dos casos de desnutrição envolve crianças menores de cinco anos, com bebês de até seis meses sendo especialmente vulneráveis. Mulheres grávidas e lactantes também representam uma parcela significativa dos casos, pois muitas chegam às unidades médicas com desnutrição moderada ou severa, dificultando a alimentação de seus filhos.

“Muitas mães não conseguem produzir leite suficiente para alimentar seus filhos porque elas mesmas estão desnutridas”, explica uma enfermeira do MSF no hospital Ad-Dahi, em Al Hudaydah. “Sempre que uma mãe não consegue amamentar, ela substitui o leite materno por leite de vaca diluído. Isso contribui para a desnutrição dos bebês.”

Diante da redução drástica no financiamento humanitário para o Iêmen, o envolvimento contínuo dos doadores e um financiamento flexível dos principais financiadores são cruciais para enfrentar a crescente crise humanitária. Um financiamento adequado e consistente, aliado a parcerias mais fortes entre o Ministério da Saúde, doadores e organizações implementadoras, ajudará a revitalizar os centros de saúde e garantir que atendam eficazmente as comunidades locais e as áreas mais afetadas.

A crise no Iêmen e em diversas partes do mundo é reflexo do colapso geopolítico do mundo atual, que se diz globalizado e moderno, mas que fratura estruturas políticas, econômicas e sanitárias, levando a contingentes cada vez maiores à precarização da vida. Trata-se, portanto, de uma geopolítica do caos, em que alguns países exploram outros para estabelecer um estado de completa destruição.

Para evitar ainda mais o agravamento da crise, o MSF apela para que esses atores expandam os esforços de vacinação comunitária para conter doenças evitáveis como sarampo, cólera e diarreia aguda. Além disso, há uma necessidade urgente de melhorar os programas de distribuição de alimentos. Iniciativas como essas garantirão que gestantes e lactantes, bem como crianças menores de cinco anos, recebam a nutrição necessária antes que sua saúde esteja em risco. Sem uma ação coletiva rápida, os mais vulneráveis no Iêmen continuarão a sofrer sob um sistema de saúde sobrecarregado e com taxas crescentes de desnutrição.

Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

 

Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.



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