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SINDICATO DOS SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO
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Publicado: 27/03/2025
Escrito por: Le Monde Diplomatique
O Palmeiras havia colocado o Cerro Portenho para bailar no Paraguai. Jogavam pela Libertadores sub-20. O placar estava três a zero para o time brasileiro. No segundo tempo, um torcedor adversário, com uma criança no colo, imitou um macaco. Em seguida, Luighi, do Palmeiras, recebeu cuspidas e foi insultado com gestos racistas. No final do jogo, ele foi escolhido para a entrevista.
“– Qual a sua sensação sobre o resultado da partida?”, questionou o repórter.
Com voz embargada, Luighi respondeu:
“– Não, não, não, não! É sério isso? Vocês não vão perguntar sobre o ato de racismo que fizeram comigo? [Luighi então começa a chorar]. É sério? Até quando a gente vai passar isso? Me fala até quando a gente vai passar isso? O que fizeram comigo foi um crime, pô! E vocês vão perguntar isso? Sobre o jogo mesmo? A Conmebol vai fazer o que sobre isso? A CBF, sei lá? Vocês não iam perguntar sobre isso? Não iam, né?”
Da FIFA à Lula, passando por diversos clubes, foram feitas as notas de praxe. O Cerro Portenho se manifestou de maneira curiosa. Estendeu sua solidariedade aos jogadores vitimados, mas associou o racismo à incapacidade dos jogadores de resistir às provocações da torcida: “Evitemos cair em provocações que possam derivar este tipo de condutas”, dizia o texto. A Conmebol aplicou uma multa de US$ 50 mil ao clube paraguaio. Considerando branda a punição, a presidente do Palmeiras, Leila Pereira, sugeriu que os clubes brasileiros se desfiliassem da Conmebol, e passassem a participar dos torneios da Concacaf (entidade de clubes da América Central e do Norte).
Após a declaração contundente de Leila, o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, disse que a Libertadores sem os clubes brasileiros seria como o Tarzan sem a Chita, sua companheira macaca.
No final século XIX, ao escutar relatos de abuso sexual de pacientes histéricas, Freud cogitou uma teoria da sedução baseada na ideia de que os adultos traumatizavam as crianças. A hipótese era de que elas sofreriam de reminiscências de um evento sexual traumático. No entanto, Freud abandonou a hipótese ao constatar que tais abusos poderiam ser meras fantasias, e não necessariamente fatos da realidade. Até o final da Primeira Guerra Mundial, o trauma ficou esquecido na teoria freudiana. O tema só foi retomado com a escuta dos ex-combatentes e a assunção da pulsão de morte, na virada de 1920, com o célebre “Além do princípio do prazer”.
Apesar da lateralidade que Freud conferiu ao trauma, Ferenczi fez dele seu eixo teórico e clínico. Se fosse possível resumir o conjunto da obra ferencziana em uma única palavra, seria difícil encontrar outra que não trauma. No artigo “Reflexões sobre o trauma”, Ferenczi o descreveu como “um choque inesperado, não preparado e esmagador”, marcado pela “suspensão de toda espécie de atividade psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido de toda e qualquer resistência”, capaz de interromper momentaneamente as faculdades de percepção e pensamento, levando o sujeito a sentir um desamparo análogo ao dos primeiros momentos de vida (1934/2011, p. 129-130).
Se essa noção é próxima àquela proposta por Freud em seus primeiros anos, Ferenczi acrescentou à sua teoria do trauma dois elementos diferenciais: o processo traumático se dá em diferentes tempos no psiquismo, e é constituído a partir de relações marcadas por vulnerabilidade. Em sua traumatogênese, propôs então que, “após uma violação grave – que pode ser sexual, física ou psicológica –, a criança ou qualquer outro sujeito em estado de vulnerabilidade, buscaria um terceiro em que confia para testemunhar a dor causada pela agressão sofrida” (Kupermann, 2022, p.33-34). O traumatismo só se efetivaria se esse testemunho fosse desmentido, ou seja, descredibilizado, ignorado, não reconhecido pela terceira pessoa, deixando a vítima abandonada, sem ter com quem contar.
O primeiro tempo do trauma é, portanto, o (1) tempo do indizível, momento da “violação externa causada pelo agressor”. Ferenczi fala em choque ou comoção psíquica para se referir a esse primeiro tempo. O segundo é o (2) tempo do testemunho, marcado pela “busca de auxílio de uma terceira pessoa ou mesmo de autoridades ou instituições competentes da vida social”, que possam servir de ouvintes e testemunhas da narrativa desse choque traumático. O terceiro é o (3) tempo do desmentido, ou do descrédito, ou do não reconhecimento, quando se diz, ou se insinua à vítima, por meio da indiferença, que nada de grave aconteceu, ou mesmo quando a vítima é punida ou culpabilizada pela violência sofrida” (Kupermann, 2022, p.33-34).
Veja-se que, para Ferenczi, o traumático não está na ocorrência de um evento danoso, mas no não reconhecimento da violência sofrida, exatamente como aconteceu com Luighi. Dessa forma, o que se desmente nesse terceiro tempo não é o evento, mas o próprio sujeito que conta, sem ser acolhido, sobre o dano que sofreu (Gondar, 2012, p. 196).
As denúncias de um racismo desmentido remontam ao canônico Pele Negra, Máscaras Brancas, escrito nos anos 1950 por Frantz Fanon. Depois do escrito ter sido rejeitado como tese de doutorado em psiquiatria, o livro foi publicado na França três anos depois. Nessa época, entendia-se que o racismo existia apenas em países como Estados Unidos, Grã-Bretanha e África do Sul. O típico leitor francês, embora perturbado com a publicação, rejeitava a hipótese onipresente do racismo, simplesmente dizendo que ele não existia (Gordon, 1952/2008, p. 14).
Entre nós, o desmentido do racismo se configura no desprezo pelos efeitos nefastos da escravidão. Lembremos que o ex-vice-presidente Hamilton Mourão anunciava aos quatro ventos que “não existia racismo no Brasil”. O não reconhecimento das dores do racismo ocorre quando se nega o lugar de subalternidade e de silenciamento da população negra. O lugar daquele que não pode falar e que, quando fala, não é escutado.
Assim, “a forma de relação social e cultural construída entre brancos e negros parece evidenciar a lógica do desmentido ferencziano: o modo dos negros verem e significarem o mundo, o modo deles existirem, é desmentido pelos brancos que impõem sua linguagem, o seu universo simbólico, caracterizando uma relação de caráter traumático” (Farias, 2018, p. 114).
Na história que abre esse texto, podemos observar a repetição de três desmentidos. Primeiro, o do repórter que despreza o racismo ocorrido com Luighi e trata a entrevista como outra qualquer. Depois, o do Cerro Portenho que, em nota, sugeriu haver culpa das vítimas diante do racismo que sofreram, em função de suposta falta de capacidade dos jogadores de resistir às provocações. As mulheres que sofrem violência e todo tipo de abuso sabem bem o que significa ser culpabilizadas pelos crimes dos homens. E, por fim, a metáfora infeliz do presidente da Conmebol que, com toda a potência performativa do cargo que ocupa, comparou os clubes brasileiros com uma macaca, personagem coadjuvante de um herói remoto de nossa cultura. Nesse último caso, seja por má-fé ou por ignorância – hipótese que abre a possibilidade de pensarmos em formas inconscientes de racismo – o desdém com o qual o sofrimento foi tratado não ameniza os efeitos deletérios do desmentido racial.
Todas as palavras que não encontram destino, sejam as ditas ou as silenciadas, são lanternas apontadas para um passado que segue, insistentemente, doendo no presente.
Paulo Ferrareze Filho é psicanalista, professor e pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Psicologia da USP.
Referências
Farias, C. P. (2018) Exclusão social e invisibilidade: desdobramentos traumáticos do racismo. In: Belo, F. (org). Psicanálise e racismo: interpretações a partir de Quarto de despejo. Belo Horizonte: Relicário.
Ferenczi, S. (1934/2011) Reflexões sobre o trauma. In: Obras completas, vol. 4. Sa?o Paulo: Martins Fontes.
Gondar, J. (2012) Ferenczi como pensador político. In: Cadernos Psicanálise CPRJ, vol. 34, jul./dez. Rio de Janeiro.
Gordon, L. R. (1952/2008) Prefácio. In: Fanon, F. Pele negra, mascaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA.
Kupermann, D. (2022) O estilo empático na clínica psicanalítica. In: Revista Cult. n. 248. Ano 25. Agosto 2022. São Paulo: Ed. Bregantini.